Que há para lá do sonhar?
Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.
Mas que há para lá do sonhar?
Só nos pertence o gesto que fizemos
Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.
Porque o traçado nosso em breve cessa,
para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.
Assim o nada a sagra quando finda
porque o que é, só é o não ainda.
Vergílio Ferreira é um dos maiores romancistas portugueses deste século.
Natural de Melo (Gouveia), nasceu em Janeiro de 1916, e morreu em 1996.
Estudou no Seminário do Fundão, licenciou-se em Filologia Clássica na Universidade de Coimbra e foi professor do Ensino Secundário
Literariamente, começou por ser neorrealista (anos 40), com Vagão Jota (1946) e Mudança (1949) Mas, a partir da publicação de Manhã Submersa (1954) e, sobretudo, de Aparição (1959), Vergílio Ferreira adere a preocupações de natureza metafísica e existencialista.
Vergílio Ferreira deixou-nos vários volumes do diário intitulado Conta-Corrente. Das suas últimas obras destacam-se: Espaço do Invisível, Do Mundo Original (ensaios), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1997) e Na tua Face (1993). Recebeu o Prémio Camões em 1992
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